Poder e Autoridade: O Regime de 1964 em A Hora dos Ruminantes, de José J. Veiga




Compartilho o texto abaixo que produzi como trabalho para a disciplina de Crítica Literária com a Prof. Drª Claudia Lorena da UFPEL. Nele desenvolvo algumas questões sobre a obra A Hora dos Ruminantes, de José J. Veiga. Espero que gostem. Caso alguém ache oportuno citar algo deste trabalho, por gentileza use ERALLDO, Douglas.

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O relógio da igreja rangeu as engrenagens, bateu horas, lerdo, desregulado. Já estavam erguendo o peso, acertando os ponteiros. As horas voltavam, todas elas, as boas, as más, como deve ser.”
(A Hora dos Ruminantes, José J. Veiga)


    Reeditado em 2015 (Companhia das Letras, 150 páginas, ISBN 978-85-359-2537-1) para comemorar o centenário do escritor goiano José J. Veiga, A Hora dos Ruminantes foi publicado pela primeira vez em 1966, dois anos após o início do regime militar no Brasil em março de 1964. A observação deste contexto no qual foi publicado, via de regra, acaba promovendo debates sobre as possíveis alegorias presentes na obra, alvo de discussão para diversos críticos e teóricos. É justamente por esse campo minado que nos enveredaremos neste ensaio, entretanto, sem qualquer intenção de ditar certezas e afirmar convicções, mas tão somente buscar compreender um pouco mais sobre esta respectiva leitura de Veiga tendo em mente a perspectiva de Hannah Arendt que nos diz que “toda obra é um testemunho de seu tempo”. Mas, para tanto, de forma que não façamos aqui apenas “sociologia da literatura”, iremos por princípio observar o que nos diz Antônio Cândido quanto a possibilidade de compreensão da obra literária:

só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo.”
E que:

sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.”

Portanto, o que esperamos ao longo deste texto não é simplesmente observar as relações do respectivo livro com seu contexto social, mas buscar compreender como aqueles anos conturbados influenciaram e se fizeram presente na estrutura interna do romance A Hora dos Ruminantes, realizando desse modo, uma análise a partir de Antônio Cândido:

Tomando o fator social, tentaremos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes, traços grupais, idéias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora (nos termos de Lukács, se possibilita a realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra como obra de arte (nos termos de Lukács, se é determinante do valor estético)”

Do mesmo modo, concomitantemente à perspectiva de Cândido, nos permitimos também neste ensaio a uma leitura alegórica conforme Kothe:

a leitura alegórica pretende compreender esse jogo em que um não elimina o outro, mas inclusive o relembra costantemente. O texto não é mais lido como se fosse um “em si” (que é o que pretende o conservadorismo pretensamente científico das correntes “modernas” da literatura); pelo contrário, a leitura lembra e relembra a todo o momento que o texto é contexto estruturado verbalmente”.

Notemos que a leitura alegórica de Kothe dialoga com a observação de Cândido de que o contexto externo deve se aderir às estruturas internas da obra. Seria esse o caso de A Hora dos Ruminantes? Apresentar elementos relacionados a isso é a proposta deste texto, porém, antes de partimos diretamente para a leitura da respectiva obra, observemos então algumas questões acerca do contexto à época da publicação do romance.
    O ano de 1966, o da publicação de A Hora dos Ruminantes, está num setor intermediário do período que compreende de 1964 a 1969 que segundo Sandra Reimão, época em que “a característica marcante do panorama cultural brasileiro foi o de uma paradoxal convivência de uma ditadura de direita com uma ampla presença de produções culturais de esquerda”, período que Roberto Schwars também aponta “Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país”; por conseguinte, um período ainda sem o ápice de violência e recrudescimento da censura impostos pelo regime militar; tanto foi assim que Elio Gaspari denominou este primeiro momento de “ditadura envergonhada”, enquanto os mais irônicos preferiam o termo “ditabranda”. No campo da literatura, Sandra Reimão ainda aponta que “na realidade, entre 1964 e 1968, entre o Golpe Militar de 1964 e a decretação do AI-5, a censura a livros no Brasil foi marcada por uma atuação confusa e multifacetada, pela ausência de critérios mesclando batidas policiais, apreensão, confisco e coerção física”. Todavia, a respeito de seu período de publicação e a despeito das próprias negações de José J. Veiga quanto a presença do fantástico e do realismo mágico em sua obra, A Hora dos Ruminantes antecipa uma tendência nos romances brasileiros que se consolidou a partir dos anos 70 conforme revela Silviano Santiago:

(...) houve dois tipos de livros que tiveram êxito durante o período: textos que se filiam ao realismo dito mágico e que, através de um discurso metafórico e de lógica onírica, pretendem, crítica e mascaradamente, dramatizar situações passíveis de censura, e os romances-reportagem, cuja intenção fundamental é a de desficcionalizar o texto literário e com isso influir, com contundência, no processo de revelação do real.”

Ainda que, se de fato talvez não encontremos em A Hora dos Ruminantes a presença do realismo mágico em seu sentido puro, também não se pode negar que a forte presença do insólito (do discurso metafórico e da lógica onírica) numa obra que primeiramente revela a chegada de estranhos à cidade de Manarairema, para depois ocorrer em sequência uma invasão de cachorros e de bois, nos permite filiá-la ao realismo mágico do período do qual fala Santiago. Do mesmo modo, podemos compreender o romance no que Regina Dalcastagnè define como “O espaço da Dor” em sua dissertação sobre “o regime de 64 no romance brasileiro”; para ela, sobre o romance pós 64, “o discurso do poder, as técnicas jornalísticas, a publicidade do governo, a autoridade da história, tudo é parodiado, estilizado, reaproveitado no contexto ficcional”. É o que tentaremos encontrar a partir de agora em A Hora dos Ruminantes.
   
Antes de mais nada, observemos como está distribuída a estrutura do romance. Uma divisão em três longos capítulos (que não vejo problema em também chamarmos de partes) realizada de forma bastante intencional em que primeiro nos revela o estranhamento da “chegada” quando os homens estranhos aportam em Manarairema e se acampam provocando as primeiras reações dos habitantes da cidade, divididos entre a curiosidade, a preocupação, as tentativas de contato, mas acima de tudo a busca pela compreensão sobre quem eram e o que queriam os “estrangeiros”, que ao final do primeiro dia, após a descoberta do acampamento dos forasteiros “Manarairema foi dormir pensando nos vizinhos esquivos e fazendo planos para tratar com eles quando chegasse a ocasião”. E, se por um breve tempo os moradores chegaram criar expectativas positivas em relação aos “novos vizinhos”, não demorou para que logo surgisse os primeiros atritos, interessantemente colocados a partir do primeiro contato realizado por padre Prudente, cujo “desrespeito” dos viajantes para com ele propiciou o primeiro olhar negativo em relação aos acampados, “empanturrados e atrevidos”, conforme disse Balduíno. Com isso, “a chegada” começa a estabelecer as primeiras relações entre “os homens da tapera” e o povo local, sendo a primeira demonstração de autoridade explícita, a negociação da carroça de Geminiano quando o interlocutor diz “Um momento rapaz. Quando um burro fala, o outro baixa a orelha”. Geminiano, por sinal, será um dos primeiros habitantes da cidade a ter de “dobrar-se” perante a autoridade dos “forasteiros” a tal ponto que em determinado momento de exasperação afirma “o meu remédio é um tiro na cabeça, um copo de veneno”; vejamos aqui que a força exercida pelos homens do acampamento sobre ele, psicológica e física, se apresenta de tal forma aterradora que o homem chega a cogitar uma solução drástica que o liberte da relação para com os “forasteiros”. Diante da falta de contato (e da soberba) dos homens é o comerciante Amâncio Mendes que mesmo depois de ir contra as queixas de Geminiano resolve “tomar” a liderança e ir “ver o que é que aqueles pebas estão urdindo”. E nesse fato podemos encontrar mais alguns detalhes interessantes a respeito da chegada e da relação estabelecida entre os “forasteiros” e a comunidade de Manarairema. Antes de ir ao acampamento, ainda que descontemos o fato de que Amâncio centralizava a posição de valentão da cidade e precisava manter tal fama, seu discurso transparecia total independência como “sou lá cachorro para atender chamado? Vou por minha conta” ou então “se não gostarem (da visita) que tomem bicarbonato depois. Enquanto eu estiver lá eles têm de me engolir”. Porém essa visita, realizada em meio às sombras do desconhecido, não mais ocasionou que uma série de especulações por parte de uma audiência que antevia confusão na certa. O fato mobilizou os homens da cidade, que reunidos no armazém de Amâncio, passaram o dia em busca de informações sobre o tal encontro. E se por um lado, o que ocorre no acampamento não é mais do que conjeturas e imaginação por parte dos demais, é o Amâncio que de lá retorna que mais uma vez nos revela o poder e a autoridade dos “forasteiros”. Neste retorno, já não há mais o homem disposto a comprar briga “Compadre, eu vou lhe dizer uma coisa. Todo mundo estava comendo gambá errado” e vai além “se todo mundo aqui fosse como eles, Manarairema seria um pedaço de céu, ou uma nação estrangeira”. Amâncio ainda iria realizar outras demonstrações de subserviência aos “forasteiros”, mas, antes, convém ressaltar que novos encontros ocorrem, agora às portas fechadas, entre ele e “os homens”. E assim, a primeira parte do livro se encerra sem se saber “das intenções dos homens, de sua ocupação verdadeira a cidade continuava na mesma ignorância do primeiro dia” ainda que alguns de seus homens tivessem se “dobrado” à vontade deles.
    Percebemos, pois, que José J. Veiga nesta primeira parte do livro nos coloca diante dum cenário bastante sugestivo. Uma população que observa ainda sem compreender totalmente o significado e a presença dos “homens da tapera”. Uma relação que não é marcada por nenhuma reciprocidade, e quem em toda e qualquer aproximação acontecida, se dá pela demonstração de força, poder e autoridade, mas que nenhum momento são explícitas a não ser pelas ações e decisões que suas personagens tomam a partir de então. Temos, portanto, aí já alguns indícios da metáfora relacionando “a chegada dos homens” e “a chegada do regime”. Seriam eles, suficientes? Observemos então que as próximas partes do romance são um tanto reveladoras.
    Se tudo o que estivesse relacionado à chegada dos “forasteiros” a Manarairema ainda permanecesse um tanto obscuro na primeira parte do livro, “a chegada”, a segunda parte denominada de “o dia dos cachorros” é deveras interessante:

“O derrame de cachorros foi o primeiro sinal forte de que os homens não eram aqueles anjos que Amâncio estava querendo impingir. Mesmo se fizeram aquilo por simples brincadeira, mostraram completa desconsideração pelos direitos alheios.”

Então, em “o dia dos cachorros” as intenções “dos homens” começam a ser desveladas pelo narrador, e percebamos que surge uma questão importante, a não observação “dos direitos alheios”, queixa que surgirá noutras oportunidades. Já, neste momento, as expectativas são cobertas pela ação que se desenvolve, uma ação que desencadeia o princípio de violência e coerção dos habitantes:

a vaga de pelos, de dentes, de patas, de rabos, de uivos chegou inteira e logo se espalhou por toda a parte farejando, raspando, acuando, regando pedras, barrancos, muros, raízes de árvores, unhando portas, choramingando, erguendo-se nas patas traseiras para ver se descobriam nas salas alguma coisa digna de atenção.”

Deste modo, assim como muitos brasileiros durante o regime pós 64, com a invasão dos cachorros, as pessoas de Manarairema tiveram de ficar “Fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as pessoas tapavam os ouvidos, pensavam que não conseguiam compreender aquela inversão da ordem.” Se por um lado, uma frase como essa talvez não fosse dita na casa de todos em meio aquele contexto social e histórico ( o do regime de 64), por outro, não se é impossível imaginar qualquer cidadão de pensamento de esquerda estupefato diante da inversão da ordem trancado em casa enervado com os latidos de cães nas ruas, o abandando-se contra a fumaça de gás de bombas. Porém, não vamos ainda afirmar nada, tampouco promover suposições, e retornemos ao efeito catártico que a invasão de cães proporciona na obra. Se por um momento cogitou-se qualquer oposição aos cachorros, logo crianças (eis aqui nossos jovens) eram chicoteadas pelos próprios pais, pois “a ordem era respeitar os cachorros” num tempo que o próprio narrador define como “foi um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa memória”.
    Mais “interessante” ainda é que acontecida a invasão, a relação de autoridade se manifesta novamente com o subjugar da cidade perante “os homens da tapera” a quem os cachorros serviam. Com o tempo “cachorros estranhos dormindo nas passagens eram respeitados mais que crianças ou velhos”. Além disso, a subjugação perante a autoridade e o poder se afirma quando “qualquer cachorro pelado, sujo, sarnento, contanto que fosse estranho, encontrava quem o elogiasse por qualidades que ninguém via mas que todos confirmavam”.
    Para além dos cachorros, a segunda parte do livro, retoma a demonstração de autoridade dos “homens da tapera” sobre os habitantes de Manarairema. Amâncio continua a defender “os forasteiros” perante as queixas dos manaraireenses, ampliadas após a invasão dos cachorros, enquanto se estabelece o conflito entre Manuel Florêncio com “os homens” após negar-se prestar um serviço a Geminiano, consequentemente, “aos estranhos”. Ainda que desconheçamos os argumentos de persuasão “dos homens” o medo impingido em seus “apoiadores locais” é tanto que Geminiano praticamente implora ao amigo que faça o serviço. Contudo, a negativa permanece e ganha contornos de conflitos políticos ao que “os homens da tapera” recorrem a Amâncio, já numa posição de lacaio, que interceda junto a Manuel Florêncio. E talvez a chegada “do homem” à conferência reservada seja um dos momentos mais reveladores do livro no sentido de confirmar suas alegorias a 64 ao passo que Amâncio saúda-o:

“Grande Honra! Dê as ordens major.

    Se até então tínhamos pouca convicção da alegoria (o que não é o caso aqui), esta saudação utilizando de uma patente militar para receber um “forasteiro” é elucidativa. Ainda, como efeito de tal conferência reservada, vemos aumentar a pressão sobre Manuel Florêncio para que faça o serviço para os “homens da tapera”. Amâncio, no papel de interlocutor, deixa veladas as ameaças “está brincando com fogo, Manuel. Os homens estão por aqui com você”. Mas, ainda assim, Manuel não se convence facilmente, insiste em negar-se a reformar a carroça “para os homens da tapera”. Perante a insistência de Amâncio, redargui “Ora essa! Em que terra nós estamos? Onde estão os meus direitos? Quem não deve não teme” ao que Amâncio lhe devolve com uma frase que poderia ter sido dita por qualquer cidadão brasileiro durante o regime pós 64:

Aí é que está o seu erro. Você fala como se não tivesse acontecido nada. Direitos? Que direitos! Quem não deve não teme! Tudo isso já morreu. Hoje em dia não é preciso dever para temer. Por que é que você acha que eu estou aqui pedindo, implorando, me rebaixando? Eu devo alguma coisa? E você já me viu com medo algum dia? Você precisa entender que não estamos mais naquele tempo...”

Sob diferentes aspectos essa passagem do romance se mostra interessante. De um lado temos a compreensão de José J. Veiga dos dicotômicos pontos de vistas que surgem diante de um regime autoritário sustentado pela força e pelo medo, e, por outro, interessantíssimo, aliás, Veiga antecipa algo que também vai caracterizar parte de nossa sociedade durante o regime militar. Se por um lado temos pessoas como Manuel Florêncio que tentam reivindicar seus direitos, por outro, há pessoas que embora não desconheçam as injustiças, a opressão, o autoritarismo, fazem como Amâncio Mendes, embora reconhecendo a gravidade da situação, mas, em vez de opô-la, simplesmente adere a ela de forma servil e resignada como ainda confessa Amâncio “hoje a gente pensa até para dar bom-dia. O que fizemos para acontecer isso? Manuel, estamos mal.” Aliás, tais passagens dão a Amâncio uma complexidade maior, e com isso contradiz Luiz André Nepomucemo que afirma sobre a personagem

O melhor exemplo de entrega do indivíduo aos apelos de uma ideologia totalitária, na obra de Veiga, é Amâncio Mendes, de A hora dos ruminantes. Sem qualquer escrúpulo, alia-se aos homens da tapera, seduzido pelas novidades propagadas sobre progresso e modernidade, e passa a servir. É o exemplo de um simples exercício de poder como uma espécie de interlocutor entre os homens e sua comunidade.”

Ao Amâncio apresentar conflitos internos, mesmo que cedendo aos “homens da tapera”, não vejo nisso uma entrega sem qualquer escrúpulo e reflexões. Por fim, Manuel Florêncio também é convencido a ceder à vontade dos “homens da tapera”. Mas a segunda parte do romance reserva outros acontecimentos interessantes quanto ao controle “dos estranhos” sobre os “nativos” e o exemplo de resistência mais persistente tem começo justamente com a “subversão” do jovem Mandovi diante dos “estranhos”.
    Pois não deixa de ser curioso que é justamente o jovem vendedor de pé de moleque a resistir aos desmandos dos “homens da tapera” pondo-os a correr atirando neles pedras, paus, sabugos… De certa forma há aí um contraponto estabelecido entre como os homens mais velhos tentaram lidar em situações semelhantes, na conversa, no diálogo, enquanto o jovem contrafeito parte para a ação física diante da raiva e da insatisfação com o ocorrido (a tomada de seus doces). Todavia, é preciso ressaltar que, embora o medo presente em todos os outros da cidade por Mandovi, o menino encontra em sua família o apoio marcado pela forte resistência de seu pai, Apolinário, um dos poucos em Manarairema obstinado a não ceder aos “desmandos” dos “forasteiros”. Nessa disputa, entre vizinhos que tentam convencê-lo a desculpar-se e uma esposa preocupada com a reação “dos inimigos” é ela que propõe algo que iria se tornar uma constante durante o regime, o exílio, “a gente podia passar uns dias no sítio de meu irmão até a calma voltar”. Estabelecida então a resistência por parte de Apolinário, mais uma vez vemos que os “homens da tapera” assumem uma posição de autoridade a serviço de uma intencionalidade movendo um conjunto de peças a fazer com que Apolinário ceda. Amâncio é certamente um dos principais interlocutores e seu armazém local de acontecimentos também sugestivos, quando “os forasteiros” vão à cidade a fim de resolver a querela. Neste ponto, difícil não aceitar as referências apresentadas pelo narrador quando da ordem de chamar Amâncio “os três informantes levantaram-se a um só tempo”. A definição dos interlocutores como informantes parece-me bastante específica e intencional. Contudo, a referências possíveis só aumentam ao passo que Amâncio Mendes precisa jogar o mais duro possível para intermediar o encontro entre “os homens” e Apolinário. Tal encontro é tido como um “interrogatório” e a coisa toda se desmascara quando um dos “homens da tapera” diz para o outro:

“você está cansando o depoente sem nenhum proveito prático. Em vez de entrar logo no assunto, fica ciscando.”

    Não podemos negar mais as semelhanças com muitos atos de interrogatório acontecidos durante o regime militar. Mais do que isso, ao que os “homens” utilizam o termo “depoente” para se referir a Apolinário, parece-me claro a situação, a condição e a definição de quem é quem naquele ato. Além disso, é no princípio deste “interrogatório” que “os homens” explicitam uma visão compartilhada com o próprio José J. Veiga a respeito do regime de 64 ou da presença deles em Manarairema “sim senhor, seu Apolinário, nós estamos aqui de passagem. Mas de uma hora para outra podemos resolver ficar”. É imperioso notar aqui que a frase antecipa o último parágrafo do romance (em epígrafe) apresentando uma esperança de que tudo aquilo seria algo passageiro. Essa frase, em epígrafe, aliás para muitos críticos de Veiga se situa dentro de um otimismo que não se concretizou. A respeito disso, duas coisas importantes devem ser ditas, uma é que de fato Veiga, ainda que em 1966, acreditava que o regime não seria longo, outra é, ainda que estudiosos como Gregório Dantas questionem a obra de Veiga como simples alegoria panfletária do regime de 64, o próprio autor estabelece essa relação como essa resposta dada ao “Webdiario” quando questionado sobre “seu otimismo” no encerramento de A Hora dos Ruminantes:

Ah, foi. Disseram isso a propósito do final do livro A hora dos ruminantes. Eu não acreditava que aquela ditadura tivesse condições de durar muito. Achei que ela ia se dissolver. Demorou muito mais do que eu esperava. Em A hora dos ruminantes, eu pensava que ela ia ser curta. Por isso aquele final otimista. Os ruminantes foram embora, deixaram a sujeira aí, mas a gente limpa. O relógio da igreja, que estava parado há muito tempo, enguiçado, foi consertado, bateu horas, todo mundo se animou. Fui muito criticado por alguns, que me acharam muito otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em Sombras de reis barbudos, livro no qual a repressão e o esmagamento chegam ao auge. Mas no fim, pensando bem, a ditadura acabou como está em A hora dos ruminantes: saiu pela porta dos fundos, não foi? O Figueiredo nem entregou a faixa ao Sarney, saiu pelos fundos, desmilingüiu como os ruminantes. Até hoje ninguém sabe direito como foi. Simplesmente foram embora. Viram que não estavam agradando. (risos)”

Além disso, não somente em relação ao regime de 64, o encerramento da obra apontando que “As horas voltavam, todas elas, as boas, as más, como deve ser” mais do que simples otimismo soa como uma crônica da fragmentada construção histórica da nação brasileira, que antes de 64 vinha de um breve período de “liberdade democrática”, mas o que não significa falta de conflitos e confrontos políticos, vide a própria “Campanha da Legalidade”. Por isso é bastante compreensível que diante de um novo regime autoritário, ao observar nossos momentos históricos, o autor não se furtaria de dizer “tudo passa”. Só que como o próprio Veiga assume, “as horas” estenderam-se mais do que ele imaginava.
    Contudo, retomando a segunda parte do livro, ela encerra ainda com uma espécie de meio termo de acordo entre “os homens da tapera” e Apolinário, e por fim, nos deparamos com mais uma subjugação, a de Nazaré, cooptada para “prestar favores” aos homens do acampamento enquanto seu namorado Pedrinho é escurraçado do lugar, e de um modo pouco amigável.
    Portanto, se numa primeira parte “a sociedade” é colocada diante de uma nova situação, uma verdadeira “inversão da ordem” em que os poderes trocam de mãos, e há de certa forma em todos um misto de paralisia e curiosidade diante da “nova realidade”, na segunda parte as intenções se revelam e a autoridade e o poder caem por sobre todos de distintas formas. A invasão dos cachorros, certamente acua, estabelece o pânico e o medo, mas acima de tudo, está nas ações “dos homens da tapera” e de seus interlocutores o estabelecimento desta nova “ordem”, a subjugação do povo de Manraireima diante dos homens que vez por outra são tratados por patentes militares, praticam interrogatórios, intimidam moradores e depoentes. Vejamos, por tanto, que assim como diz Cândido, já é possível perceber que o contexto social se enraíza nesta obra em suas entranhas estruturais. O externo se internaliza através das alegorias e das metáforas. Portanto, ainda que façamos um importante parêntese como alerta Nepomucemo “(…) cumpre repetir que as análises restritivas da obra de Veiga, que a têm identificado com panfleto contra a ditadura militar no Brasil, devem dar espaço a possibilidades mais amplas, em que a violência e o poder como um todo se expandem para um universo além dos limites da política e dos aparelhos do Estado” é inegável perceber como a obra se engendra na estrutura de A Hora dos Ruminantes, posição já corroborada pelo autor, que inclusive reconhece seu erro sobre a duração e “a mão pesada” do regime, e por isso dá sequência ao tema em A Sombra dos Reis Barbudos.
    Mas ainda não terminamos aqui a análise da obra, pois ainda nos resta observar a terceira e mais violenta parte do livro, “o dia dos bois”; uma espécie de reconhecimento “inconsciente” do autor e destruição total de seu propalado “otimismo”. É, pois, esta parte a que talvez mais possibilite argumentos contra a “simples alegoria” ao regime de 64, afinal, estávamos ainda na “ditabranda”, quem sabe, ainda no “dia dos cachorros”. No entanto, aqui estamos muito mais diante do olhar afiado de um autor que observa sua realidade, a relê e a transporta para o coração de sua obra. É nesta humilde opinião, “o dia dos bois” quando José J. Veiga aproxima-se de autores “proféticos” como George Orwell, Aldous Huxley e Julio Verne, trabalhando com cenários existentes reconstruindo probabilidades que acaba por se confirmar. Vejo nessa última parte do livro uma antecipação do recrudescimento do regime a partir do “AI-5”. Com a invasão dos bois, Manarairema é tomada pelo medo, pelo horror, pela violência. Das páginas saltam os sentimentos de opressão causados por uma população, que parte é pisoteada pelos ruminantes, parte é prisioneira em seus próprios lares. No meio desse caos “as pessoas mais ponderadas procuravam acalmar as outras explicando que, se o presente era negro, a longo prazo a libertação era certa: tantos bois juntos não tinham condições de ficar por ali por tempo dilatado”; Percebamos nesse trecho como misturam-se as vozes de autor e narrador. Percebamos também como aqui o otimismo não é assim exacerbado. Se o auge da violência e opressão acontecem nessa parte do livro, novamente José J. Veiga coloca nos jovens certo protagonismo. São eles que se aventuram e se arriscam por entre bois numa cidade sitiada. Nessa parte, o ciclo também se encerra (otimismo, diriam uns), mas como o próprio Veiga demonstra, um fim, mas não sem deixar alguns estragos e traumas. Enfim os “homens da tapera” vão-se embora, vão-se também os bois enquanto o relógio da igreja range novamente. Terminada a leitura de A Hora dos Ruminantes, sem qualquer prejuízo podemos concordar aqui com Nepomucemo sobre como observa a obra de Veiga:

um painel complexo sobre a inserção da violência no quotidiano das pessoas já estava perceptível em seus primeiros livros. A utilização de tramas em que o sujeito social se torna cúmplice de uma violência consentida, que é mais sutil do que efetivamente repressora, revela o quanto Veiga já se filiara a essas indagações específicas. Quaisquer que sejam as ordens de um poder invisível, a resposta a ele é sempre a mesma: “fazemos o que nos mandam.””

    Encerro nossas observações sobre este interessante livro não desejando fechar outras possibilidades de leituras, tampouco decretar quaisquer afirmações peremptórias que qualquer bom retórico pudesse desconstruí-las. Porém, vemos muita validade sim na observação do romance e suas relações com o regime de 64, ainda que hajam muitos questionamentos, e alguns bem argumentados. Também é preciso dizer que num mundo em que não resolvemos nossos problemas sociais e históricos por todo o globo terrestre, certamente poderá encontrar ecos noutros lugares, noutros tempos. Enquanto isso, mais “otimistas” que o próprio José J. Veiga, ainda aguardamos por um relógio em que a utopia permita ter apenas “as horas boas”.

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BIBLIOGRAFIA


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REIMÃO, Sandra. Fases do Ciclo Militar e censura a livros – Brasil, 1964-1978: disponível em: < http://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_fases_ciclo_militar.pdf > acesso: 25/11/2015
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CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: Ouro Sobre Azul. Rio de Janeiro, 2006
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KOTHE, Flávio R. A Alegoria: Ática, São Paulo, 1986.
SANTIAGO, Silviano. Repressão e censura no campo das artes na década de 70. In:
Vale quanto pesa. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 1982.